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quinta-feira, 9 de setembro de 2010

CLARICE LISPECTOR




Visão de Clarice


Clarice
veio de um mistério, partiu para outro.

Ficamos sem saber a essência do mistério.
Ou o mistério não era essencial. Essencial era Clarice viajando nele.

Era Clarice bulindo no fundo mais fundo, onde a palavra parece encontrar
sua razão de ser, e retratar o homem.

O que Clarice disse, o que Clarice viveu para nós
em forma de história
em forma de sonho de história
em forma de sonho de sonho de história
(no meio havia uma barata ou um anjo?)
não sabemos repetir nem inventar.
São coisas, são jóias particulares de Clarice,
que usamos de empréstimo, ela é dona de tudo.

Clarice não foi um lugar comum.
Carteira de identidade, retrato.
De Chirico a pintou? Pois sim.
O mais puro retrato de Clarice
só se pode encontrá-lo atrás da nuvem
que o avião cortou, não se percebe mais.

De Clarice guardamos gestos. Gestos,
tentativas de Clarice sair de Clarice
para ser igual a nós todos
em cortesia, cuidados materiais.
Clarice não saiu, mesmo sorrindo.
Dentro dela o que havia de salões, de escadarias,
de tetos fosforescente e longas estepes e
zimbórios e pontes do Recife em brumas envoltas
formava um país, o pais onde Clarice vivia,
só e ardente, construindo fábulas.

Não podíamos reter Clarice em nosso chão
salpicado de compromissos. Os papéis, os
cumprimentos falavam em agora em edições,
possíveis coquetéis à beira do abismo.
Levitando acima do abismo Clarice riscava
um sulco rubro e cinza no ar e fascinava-nos.

Fascinava-nos apenas.
Deixamos para compreendê-la mais tarde.
Mais tarde, um dia...saberemos amar Clarice.

(Carlos Drummond de Andrade)

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